A riqueza de quem tudo perdeu

14 de maio de 2024

Catástrofe no RS revela como precisamos de pouco para sobreviver!

Por Alfredo J. Gonçalves

Evidentemente não se trata de romance ou poesia. A ferida da tragédia permanece viva e sangrenta por todos os poros. Água e lama ainda cobrem as casas, em alguns casos até o teto. Centenas de milhares de pessoas, sem chão e sem rumo, encontram-se nos abrigos improvisados. A grande maioria dos atingidos perderam em segundos, minutos, horas tudo aquilo que haviam conquistado durante anos. Estradas continuam bloqueadas, pontes foram levadas pela torrente, edifícios ruíram definitivamente. Nesses abrigos, não é fácil resgatar um mínimo de privacidade familiar ou parental. Menos fácil, ainda, é ver-se dependente da caridade pública. Água potável e alimentos; remédios, perfumes e cosméticos; roupas do corpo, de mesa e de cama; produtos de higiene pessoal e calçados; veículos, eletrodomésticos, móveis e colchões; livros, fotos, documentos, lembranças do ambiente familiar e amigo; toda espécie de animais de estimação e até mesmo os brinquedos das crianças – tudo foi arrasado e arrastado pela fúria brutal da tempestade.

CimiinundacaoRSUma calamidade sem precedentes que se estende por quilômetros de ruas e avenidas alagadas. Que mostra sua face mais cruel nas habitações engolidas até o telhado, nas ruínas, escombros e destroços acumulados por todos os lados. E que, em rápidos segundos, impõe a difícil decisão de sair ou não sair da própria casa, tão duramente adquirida. Pior, uma tormenta que não dá tréguas, entrando pelas portas e janelas uma, duas, três vezes!... Pessoas completamente ilhadas à espera do socorro, bairros tomados pelo pânico, cidades inteiras isoladas de qualquer ponto de contato. A tanta e tamanha desgraça, somam-se as redes hidráulica e elétrica comprometidas, comprometendo igualmente qualquer tipo de comunicação. Lamentos, lágrimas engolidas à força e pranto declarado vão se multiplicando. E agora chega o frio!

O pesadelo parece não ter fim. A cada estiagem, chegam as previsões meteorológicas de novos aguaceiros. A água dos rios que já começa a baixar, se ergue outra vez furiosamente. Até quando esta situação degradante, até quando este inferno?!... Mas, é justamente o inferno que acaba por revelar um pedaço do céu. Em maio à crise, ao caos e ao “apocalipse”, a humanidade se encontra consigo mesma. Os desencontros nos espaços dos abrigos abrem a oportunidade para encontros inusitados, mas também reveladores. Dor, medo, inquietude e ameaça são as coisas que mais se compartilham. Destinos adversos se cruzam e recruzam, e nessas inóspitas encruzilhadas, luzes e sombras se mesclam e se entrelaçam. A experiência de árduas experiências passadas pode, sim, levar a uma “fusão de horizontes” furos, para usar a expressão de H. G. Gadamer.

Mas no terreno das perdas, da carência e da penúria, podem emergir riquezas absolutamente insuspeitadas. A humildade de receber bem pode se revelar tão nobre e tão grande quando a solidariedade de oferecer. Aliás, as noites mais escuras e as crises mais desesperadoras, numa ambiguidade característica da condição humana, costumam intensificar tanto a corrupção do mal quanto o brilho do bem. E aí oportunidades e oportunismos andam de mãos dadas. Vandalismo e voluntariado normalmente coexistem em meio às desgraças. É nesse solo ambíguo e escorregadio que o ato de “dar e o receber” tendem a revelar as riquezas ocultas no mais profundo das entranhas humanos. Por terra caem as máscaras, desnuda-se a hipocrisia do cotidiano, nivelam-se orgulhos e humilhações, para o surgimento inesperado de novos laços, novas encontros, diálogos nunca antes imaginados – enfim, para novas relações humanas.

Semelhantes momentos turbulentos tendem também, e sobretudo, a relativizar e ressignificar o conceito de riqueza. Descobre-se subitamente de quão poucas coisas necessitamos para sobreviver sobre a face da terra. Banalizam-se muitos objetos que antes considerávamos essenciais e absolutos. O caminho e o sofrimento ajudam a depurar a mala e a alma. Purificam a quantidade de produtos e quinquilharias que, pouco a pouco, vamos acumulando ao longo de nossa trajetória existencial, focalizando o olhar e a atenção naquilo que é essencial. Quem navega sabe que, às vezes, é preciso esvaziar a embarcação do que é supérfluo, para salvar o que é absolutamente indispensável.

Vivemos numa sociedade cuja primazia está posta no processo de produção-comercialização-consumo. Nela, com frequências as pessoas se medem pela quantidade ou aparência de “bens” que possuem, não pelo “bem” que são capazes de colocar à disposição, e menos ainda pelas relações que são capazes de costurar e cultivar. Apesar da perda, a maior riqueza humana permanece de pé, junto com a vida, a fé e a esperança!

Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do Serviço de Proteção ao Migrante.

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