"Democracia" de Bíblia e arma na mão

06 de junho de 2022

Ditadura? Totalitarismo? Lobos vestidos de cordeiros? Hipocrisia? Farisaísmo? Ação miliciana? Um pouco de tudo isso misturado ao veneno de uma ideologia do extermínio.

Por Alfredo J. Gonçalves*

Essa é a “democracia” de nosso inominável chefe supremo. Ódio, mentira, ataques, difamação, ameaças, linguagem grosseira!... Essas diatribes, filhas bastardas do casamento incestuoso entre negacionismo e supremacismo, confundem-se com a liberdade de expressão. Pouco importam as consequências nefastas dessa perversa união neofascista e neonazista, sempre com os dentes arreganhados e as unhas afiadas! O negacionismo rompe, um a um, todos os fios de ouro que tecem as relações humanas, mesmo aquelas primordiais e elementares. Daí a polarização míope, cega e exacerbada – que tem como consequência a divisão e o cancelamento – entre pais e filhos, irmãos e irmãs, marido e esposa, familiares e parentes, amigos!... O opositor é visto e perseguido como inimigo. A intriga destila o veneno que respiramos: no casamento, na família, nas comunidades, na sociedade e nos intercâmbios internacionais. Esgarçam-se a olhos vistos, os laços, o bordado do tecido social, tão longa e vagarosamente alinhavados.

O supremacismo, por sua vez, tem por princípio a superioridade “natural” de determinados grupos humanos sobre outros. Surge a ideia de raça pura e superior que, em momentos de crise, caos e barbárie, costuma emergir do túnel escuro do tempo. Criam-se então duas espécies de seres humanos: os que podem e devem sobreviver a qualquer custo e os que podem ser exterminados. “Nós, os bons”, de um lado; “eles, os maus”, do outro. Puros e impuros, com sério risco de contaminação. O resultado disso, como testemunha o caso de Hitler, é a luta de vida ou morte pelo espaço vital do mais forte, em detrimento dos que se revelam frágeis e vulneráveis. Os brancos, machos, ricos e “perfeitos” têm o sagrado direito de sobreviver para dar continuidade à raça pura. Os demais!... Bem os demais que vivam das migalhas e da caridade pública, e se por acaso estas escasseiam, seu desaparecimento não deixará de ser uma maneira que resolver a situação. Sub-repticiamente reaparece com força a “solução final”.

Nossos ancestrais, os povos indígenas, as comunidades quilombolas ou ribeirinhas, os migrantes e refugiados, os negros e afro-americanos, a população LGBTQIA+, o povo em situação de rua, os trabalhadores rurais sem-terra, os componentes das cracolândias e das periferias, mulheres que “não aceitam o seu lugar na sociedade”, crianças pobres e analfabetas, estudiosos, artistas e ativistas sociais, ambientalistas em particular – são vistos como ilhas e arquipélagos selvagens e desconhecidos, divididos entre si e desconectados com a modernidade ou pós-modernidade. Os pobres e indefesos são criminalizados, as vítimas culpabilizadas pelos ataques que padecem. Demonizados de igual forma acabam sendo os defensores dos direitos e da dignidade humana. Só servem para atrapalhar as forças do progresso humano. Por que retardar o avanço de quem pretende produzir e alavancar o país? Por que impedir o agronegócio e a extração de nossas riquezas minerais e vegetais? Por causa desse “punhado” de pessoas que vivem no ócio e são incapazes de contribuir para um futuro rico e poderoso?

O projeto, embora brutal e diabólico deve ser revestido com roupagens religiosas. O famigerado slogan “Deus acima de todos” não pode faltar nessa visão psicopata do mundo. Bíblia e a arma andam juntas, como duas irmãs siamesas. São intercambiáveis. A bíblia cospe raios do céu sobre os pecadores incorrigíveis. Converte-se em arma privilegiada para defender-se dos infiéis e proteger-se do mal que ronda as portas, de modo particular contra a falta de patriotismo e o comunismo. Este, qual fantasma, está na esquina. A arma, de seu lado, cospe balas assassinas. Converte-se numa espécie de bíblia a ser utilizada contra os inimigos mais perigosos, aqueles que tudo criticam, que se organizam e, com petulante ousadia se mobilizam pelas ruas e praças. Da mesma forma que os dragões do Apocalipse, bíblias e armas soltam fogo pelas ventas para purificar o mundo e a história daqueles que insistem em mudar o rumo das coisas.

Ditadura? Totalitarismo? Lobos vestidos de cordeiros? Hipocrisia? Farisaísmo? Ação miliciana? Um pouco de tudo isso misturado ao veneno de uma ideologia do extermínio.

*Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do Serviço de Proteção ao Migrante, SPM, São Paulo, SP.

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