Natal: significado do Mistério do Salvador do Mundo
O Natal é o Mistério de Deus em nossa, em minha, em sua história pessoal, e na História que vamos fazendo, com as contradições, certezas e incertezas que o tempo nos impõe.
E assim chegamos ao final de mais um ano: os ciclos se encerram; os problemas são solucionados, assim esperamos; as preocupações são superadas, aparentemente; as dificuldades parecem mais "leves", pelo menos por enquanto. E assim vamos olhando os dias natalinos e a passagem do ano, com as contagens regressivas que sempre são recordadas e retomadas naqueles dias depois do Natal. Parece que estas semanas nos oferecem uma espécie de fôlego extra e, quase sempre, nos animam, chegando até a nos levar a gastar com alguma festa, uns presentes e, em certos casos, possíveis viagens e encontros. São coisas, em si, boas. A modernidade caricaturizou muito, intrometendo elementos estranhos, desvirtuando os sentidos. Que pena!
Eu sou de um tempo no qual o Natal era mais contido e a passagem de um ano para outro era simples, até silenciosa! Já faz tempo, como pode ser percebido. Recordo-me de Natais antigos, e de modo especial de um, quando eu tinha seis anos. Não pedi presentes aos meus pais, mas sabia que iria ganhar uma caixinha de lápis de cor, o que era extraordinário para mim. Naquele Natal, contudo, eu ganhei algo admirável, que me encantou e com o qual ainda sonho. Um caminhãozinho de madeira. Ainda não havia brinquedos chineses frágeis de plástico, nem objetos tecnológicos que absorvessem a atenção e até a alma de crianças, jovens e adultos. Meu caminhãozinho tinha um tom esverdeado, e era de madeira, feito no Brasil mesmo, por um hábil artesão, ou por uma máquina manual. Foi memorável aquele dia, aquele Natal, que entrou em minha história. Pequenas lembranças, grandes significados.
Eu penso que é isso que precisamos buscar no Natal e não acho fácil fazer esta busca agora. Refiro-me ao significado do que fazemos, do que vivemos, sentimos e procuramos. Às vezes, parecemos como um certo corvo. Sim um corvo! Um corvo com um grande pedaço de carne, que voava para um lado e para outro, aparentemente feliz, mas perturbado por outros 20 corvos que o perseguiam, querendo roubar-lhe, justamente, aquele pecado de carne! E ele voava de um lado para outro, com o bando de rapina na sua perseguição, cercando, perturbando, desesperando. A alegria da carne no bico tornou-se pesada, opressiva pela fuga que se tornava cada vez mais difícil. Então, em um momento de lucidez, ou talvez de descuido - não podemos saber ao certo - a carne cai de seu bico. E os 20 corvos deixam de perseguir e caçar seu anterior possuidor. Agora, eles se debatem entre si, em uma fúria descontrolada, nos céus. O corvo olha, de longe, aquela cena. Ele começa a perceber que agora pode enxergar melhor, de modo mais amplo, livre, colorido. Ele está livre. Está mais leve. Não tem mais aquela carne, mas poderá caçar outra, menos vistosa, atraente para outros corvos, mais rápida e fácil de digerir. Ele está, sim, livre!
Otimismo fajuto
Nós lutamos durante o ano, trabalhamos, buscamos o melhor, ou pensamos que assim fizemos. Mas nem sempre colhemos o que procurávamos. Antes, terminamos por ser mais frustrados do que quando começamos. Quase sempre, nos finais de ano, criamos ou recriamos aqueles otimismos fajutos que nos levam a pensar que no próximo ano teremos mais dinheiro, pois iremos economizar, ter um salário melhor, em um emprego também melhor... Seremos mais bonitos, pois teremos emagrecido, feito implante, aplicado Botox, cuidado dos dentes... Nossos sentimentos estarão mais serenos, confiantes, pois teremos encontrado um amor, ou confirmado o amor que já temos, ou deixado de lado um amor que não existia... Talvez façamos aquela viagem que, já faz uns cinco ou seis (talvez mais) anos, queremos fazer e nunca temos "tempo", o que quer dizer, além do óbvio passar dos dias, também o dinheiro que paga os planos de viagens e as hospedagens... E por ai vai. Praticamente repetimos, nos últimos 15 ou 10 dias de cada ano, os mesmos pensamentos e expectativas, meio que sem perceber. Retomamos os auto enganos em que caímos, as ilusões que alimentamos e plantamos ou adubamos as frustrações que vão nos corroendo. Parecemos aquele corvo, que carrega um pedaço de carne como se fosse toda a sua vida, sua liberdade e sua esperança. Mas que apenas era uma ambição passageira que, quando descartada, nos torna mais leves e livres. Pode até ser que, aquele pedaço de carne fosse, na realidade, uma carniça.
Sonhos, desejos, projetos, planejamentos: eu também os faço e até de um modo bem elaborado. Agora mesmo eu me dedico a isso, sabendo que, ao longo do próximo ano, muita coisa será diferente do que eu esperava. E outras surgirão, mudando, exigindo adaptações, renúncias, superações. Esta é a vida. E eu me pergunto: qual o significado disso tudo? Por que eu devo celebrar o Natal, por que festejar o Ano Novo? O que isso quer dizer?
Advento
O Tempo do Advento, vivido na Igreja por quatro semanas antes do Natal, é um tempo especial, embora rápido demais para que o aproveitemos adequadamente, eu penso. Ele é dividido em duas partes. A primeira parte envolve os dois ou três primeiros domingos, e nos chama a atenção para uma das vindas de Jesus: a vida no final dos tempos. Trata-se de uma visão de mundo, de valores, como se diz, de significados. O tempo do Advento passa rápido como os dias de um jovem que, quando se percebe, está já na casa dos 30 anos, e vêm os 40 e... E assim vai, vai o tempo. O tempo sempre vai, e não podemos controlá-lo. Embora ele seja de algum modo "múltiplo", pois é relativo na Física, específico na Biologia, profundo na Geologia, ele é parte do Mistério que nos cerca.
Sim, na Física o tempo é diferente para cada observador, dependendo da sua velocidade ou da massa do corpo onde ele se encontra. Na Biologia o tempo de uma tartaruga é longo, lento, completo, mas o de uma mosca é rápido; alguns insetos têm uma vida com o tempo enorme de menos de 24 horas... Na Geologia o tempo é contado em Mega Anos, que são milhões de anos; ou em Giga Anos, que são bilhões de anos... Os latinos diziam Tempus fugit, o que quer dizer "o tempo passa", no sentido de sequência, caminho, rapidez, celeridade. Quando se tem sete ou oito anos, o tempo parece que não anda. Quando se tem 70 ou 80 anos, o tempo parece que voa mais rápido do que o som. Não o podemos controlar, às vezes nem o compreender.
Então, se o tempo não pode ser compreendido ou controlado, o que podemos fazer é usar bem o tempo que temos. E mesmo este "tempo que temos", ou seja, que ainda vem, nós não o controlamos, pois não sabemos quanto será. Sabemos o que foi, o "tempo que tivemos", não o que será. Por isso é que nossas escolhas são fundamentais, realmente decisivas.
Tomemos alguns exemplos de figuras natalinas para compreender a importância das escolhas. Os Magos, no início do capítulo dois do Evangelho segundo Mateus. Eles visitam o pequeno Jesus recém-nascido. Deixaram seus países, suas culturas, investiram seu tempo, o que quer dizer que investiram a si mesmos, sua segurança em uma longa viagem, seus recursos com muitas despesas, suas expectativas, em uma intensa busca. E mesmo depois de ter procurado em lugar errado, o palácio do maligno rei Herodes, eles encontram o rei dos judeus recém-nascido em Belém. Fizeram uma escolha e viveram esta escolha, o seu Mistério.
Os pobres pastores, citados no capítulo dois do Evangelho segundo Lucas, estavam com seus rebanhos, em uma fria noite. E se deslumbraram com algo extraordinário. Os Magos viram uma estrela que os conduziu. Os pastores reconhecem um anjo, seguido de outros seres celestes, que os encantam e conduzem até o pequeno Jesus. Tanto os Magos como os Pastores viveram, cada um de seu modo, suas escolhas, fazendo o tempo ter uma qualidade, um Mistério.
Aqui temos a segunda parte do Tempo do Advento, que ocupa o último domingo antes do Natal, entre os dias 17 e 24 de dezembro. Aqui o que vemos é a preparação para a Memória daquele dia, escrito na História com uma força admirável. Eu já li e estudei autores que questionam o fato do nascimento de Jesus, a data, os textos e suas descrições e muito mais. Tudo pode ser questionado, até o valor de minha vida! Mas tudo pode também ser acolhido, amado, contemplado. Em nossas grandes cidades, no Ocidente e no Oriente, as festas de final de ano, com o Natal incluso, são expansivas, barulhentas, tumultuadas. O Mistério não é valorizado em sua Beleza. Que pena!
A influência consumista nos convence a comprar, comprar e comprar, para presentear e ganhar o amor e a atenção de alguém, pelo menos naqueles momentos. Também nos imergimos em diversões, em comidas, bebidas. Coisas boas, sim. Mas que podem nos desviar do significado do Natal.
Salmo Messiânico
Há muitas maneiras de compreender o significado do Natal, de explicar este Mistério. Eu escolhi para este artigo um trecho do Salmo 72(71), que é um Salmo Messiânico, de esperança. O Salmo diz, em uma de suas belas estrofes: "Nos seus dias a justiça florirá, e grande paz até que a lua perca o brilho!" São metáforas aplicadas a dois substantivos que são conceitos importantíssimos para a Sagrada Escritura. "Florir" significa expandir, ampliar, e por consequência transformar, encantar, determinar o fato, a pessoa, a História. O "brilho da lua" que se perde indica o final dos tempos, seja quando e como for, um tempo distante, que se perde de vista.
E agora os conceitos fundamentais: "justiça" e "paz". A justiça não é o resultado de um julgamento ou uma investigação jurídica. Não é um resultado consensual, um equilíbrio de forças ou uma adequação a uma ou mais leis que mudam conforme os gostos e influências ideológicas e mesmo religiosas. A Justiça é a situação do homem (entenda-se ser humano) que está perante Deus e nele encontra seu sentido, seu significado. Como padre eu já encontrei pessoas profundamente transtornadas pelo pecado, pela negação de Deus, da Misericórdia, do Amor. Arrasadas elas procuram o Sacramento da Reconciliação e, aceito o perdão, sentem-se diferentes, livres, pode-se dizer, conforme o pensamento bíblico, "justificadas": foram tocadas por Deus, pela sua presença santificante, pela Graça, estão "agraciadas". É o Espírito do Senhor que transforma, que reconduz ao Caminho, que rompe o mal, que faz novas todas as coisas, no dizer do Apocalipse. Isso significa "justiça" no Salmo 72(71).
"Paz", que no Salmo é o resultado da justiça, não é uma ausência de conflito, uma harmonia alcançada com acordos ou mesmo com disputas, com acertos de contas. Paz é o resultado da Graça, que é a presença de Deus. A Paz aqui indicada é a consequência direta da Justiça, que se concentra em Deus. Esta Justiça e sua consequente Paz acontecem com a irrupção do Mistério de Deus na História. O Natal é a entrada definitiva e decisiva de Deus na História. Deus, que atua na inteligência e no afeto humanos, atua também na História, quando intervém de um modo admirável, transformador. Isso nem sempre é observável no momento ou no tempo em que acontece, mas no tempo que sucede e que permite ver em perspectiva. De fato, olhando a figura humana do recém-nascido Jesus, filho de Maria e de José, seria possível, de modo imediato e claro, compreender sua identidade de Salvador? Possivelmente não, pois Ele estava totalmente submetido à sua evidente e expressiva natureza humana de criança, dependente de cuidados e zelos constantes como qualquer neonato. Mas ali estava, sim, o Mistério.
O significado do Natal: isso é importante que busquemos compreender! Uma vez eu participei de uma celebração natalina na qual o padre dizia, insistentemente, que aquele era o "aniversário de Jesus". Achei "bonitinho", mas não me convenceu. "Feliz aniversário Jesus!": isso pode parecer simpático, mas não tem nada de catequético, de evangélico, de mistério. Não tem significado, pois se esgota na própria realidade: um aniversário é restrito a um dia, não pode estender-se a um tempo, um ano, sempre... Então, não é aniversário!
Recordemos que "Mistério", palavra que eu pessoalmente uso muito e busco compreender, não é algo inacessível, incompreensível. Não! Mistério é algo que eu posso compreender, mas quanto mais eu compreendo, mais eu ainda posso compreender. É um encontro, um conhecimento, um sentimento, uma certeza que sempre se renova, aprofunda, deslumbra.
O Natal é o Mistério de Deus em nossa, em minha, em sua história pessoal, e na História que vamos fazendo, com as contradições, certezas e incertezas que o tempo nos impõe. É por ser o "Mistério da Encarnação" que o Natal pode ser vivenciado sempre, em todo o ano, pois é sempre o tempo do Mistério. A encarnação está sempre presente, agindo e transformando. Mas sendo celebrado em um tempo específico, durante o ano, talvez seja este o momento oportuno, o "káiros" (que é "tempo espiritual", "psicológico", "especial") para restabelecer a comunhão com Deus, com quem está distante, com o diferente. É certo que cada um de nós precisa ressignificar o Natal em sua vida e história, sentimentos, pensamentos e escolhas. A chance é esta, o momento, o "kairós", repito, é agora!
São Paulo, falando aos Romanos, nos ensina e exorta com energia: Tanto mais que sabeis em que tempo estamos vivendo: já chegou a hora de acordar, pois nossa salvação está mais próxima agora do que quando abraçamos a fé. A noite avançou e o dia se aproxima. Portanto, deixemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz. Como de dia, andemos decentemente; não em orgias e bebedeiras, nem em devassidão e libertinagem, nem em rixas e ciúmes. Mas vesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis satisfazer os desejos da carne. (Romanos 13,11-14) Revestir-se do Senhor é deixar os limites estreitos das teimosias e maldades, frutos de nossas buscas egocêntricas e maliciosas, e crescer na experiência do Mistério do Salvador.
Feliz Natal a todos!
Mauro Negro, OSJ é professor de Teologia. mauronegro@uol.com.br