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Testemunho

O contato com o chão nos conecta com o sagrado

“Lembra-te que és pós, e ao pó hás de voltar!” (cf. Gn. 3,19)Há lugares no mundo em que o chão conserva a dignidade do sagrado. 

Por Andrea Leite Carvalho

No Uzbequistão, o chão não é um espaço de rebaixamento, mas de comunhão. É sobre ele que as famílias se reúnem para comer, para rezar, para acolher. Sentar-se no chão é um gesto de humildade e gratidão. É reconhecer que ninguém está acima do outro, que todos partilham a mesma poeira da terra e o mesmo sopro de vida. É como se cada refeição recordasse silenciosamente as palavras de Jesus: “Quem se humilha será exaltado” (Lc 14,11).

O chão que ensina

Nas casas uzbeques, tradicionalmente não existem cadeiras nem mesas altas. Em seu lugar, há tapetes estendidos com esmero e uma mesa baixa chamada dastarkhan, sobre a qual repousam o pão, o chá, as frutas secas, os doces e os respectivos pratos para cada refeição.

As famílias sentam-se ao redor desse pequeno altar cotidiano, cruzando as pernas com naturalidade, como quem se desarma. O chão é espaço de encontro, de igualdade, de escuta. Aqui se pode fazer a experiência de se sentir como Jesus e seus discípulos sentados ao redor daquela mesa na última ceia e entender que, em cada refeição, Ele está realmente presente conosco e nos oferece continuamente a sua vida através do pão que nos nutre. 

Os tapetes, com suas cores intensas e desenhos simétricos, são testemunhas silenciosas da vida. No chão, tudo se torna mais lento. O olhar se aproxima das pequenas coisas. O corpo se dobra, e o coração, também. A vida parece se colocar na altura certa para perceber o essencial.

O despojamento como caminho

Para os uzbeques, sentar-se no chão não é um gesto de pobreza, mas de dignidade. O chão é o lugar onde todos são iguais - o ancião, a criança, o visitante. 

Descer ao chão é um gesto espiritual, ainda que inconsciente. É o mesmo movimento de Jesus, que se inclinou para lavar os pés dos discípulos. O chão é o lugar da verdade, onde o orgulho se dissolve e o amor pode florescer.

A espiritualidade uzbeque - mesmo em sua forma cultural e não explicitamente cristã — traz consigo um profundo respeito pelo outro. Essa reverência silenciosa, feita de gestos e não de palavras, se manifesta no modo como se serve o chá, como se oferece o pão, como se partilha o espaço. Tudo é simples, mas tudo é pleno de significado.

O contraste e o convite

Quando se vem de uma cultura como a nossa, o chão uzbeque provoca um leve desconcerto. As crianças no Brasil ainda possuem este contato com o chão, mas com o passar dos anos, esse contato é esquecido e o corpo já não se adapta tão facilmente a estar fora de cadeiras, poltronas e sofás.

Por este motivo, no início o corpo reclama, as pernas doem, o costume se estranha, mas com o tempo, o coração aprende que é ali, perto do chão, que se sente a presença de Deus de modo diferente.

Enquanto no Brasil a casa tende a organizar-se para o conforto, no Uzbequistão o espaço se orienta para o acolhimento e a igualdade. O tapete é o sinal dessa espiritualidade da acolhida: estende-se não para mostrar beleza, mas para oferecer descanso.

O chão ensina uma teologia silenciosa - a de que não é preciso estar acima para estar perto de Deus. Ao contrário: o alto se revela no baixo, o divino se manifesta na poeira, o mistério se esconde nos gestos cotidianos.

Para quem chega como missionário, aprender a sentar-se no chão é aprender uma nova forma de amar. É preciso aceitar o desconforto inicial, a renúncia à posição ereta, o cansaço das pernas, a vulnerabilidade da postura. Mas, pouco a pouco, esse gesto se torna oração. Nesse chão, Deus se revela como simplicidade.

O chão brasileiro e o chão do coração

O chão brasileiro é também sagrado, mas muitas vezes esquecido. O costume uzbeque recorda ao coração brasileiro que a vida espiritual floresce quando nos desarmamos, quando abaixamos o olhar e reconhecemos que não estamos acima de ninguém.

Sentar-se no chão é, em última instância, um ato de fé. É confiar que não precisamos de elevação para encontrar Deus. É compreender que o mesmo pó que suja os pés foi moldado para criar o homem. É aceitar que a santidade começa onde termina o orgulho.

O chão como altar

O chão uzbeque é silencioso, mas fala. Fala da terra que acolhe, do trabalho paciente das mãos, do calor que une as pessoas. Fala da vida simples, despojada e profundamente humana. E, no fundo, fala também de Jesus que “aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens”. (Fl. 2,7)

Ali, onde o chão é sagrado, o ser humano aprende a se abaixar, não como quem se diminui, mas como quem se aproxima da fonte. No chão, tudo começa: a oração, o serviço, a comunhão. E talvez seja por isso que, mesmo distante da sua terra, o(a) missionário(a) pode encontrar ali um lar: porque o chão é o mesmo em todo lugar, e o pó que cobre os tapetes é o mesmo pó do qual viemos e para o qual voltaremos.

Oração final

Senhor, ensina-nos o valor do chão. Que saibamos descer, sem medo de perder, dobrar os joelhos sem buscar aplausos, servir sem ser vistos. Dá-nos o coração simples dos que vivem perto da terra, e o olhar dos que descobrem Tua presença no pequeno. Amém.

Andrea Leite Carvalho, MC, é missionária da Consolata no Uzbequistão. Textos usados como referência: Campbell, O poder do mito e Panikkar, O silêncio do Buddha.  

 

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