“Quando os povos falam, a missão escuta”
O mundo vive um momento decisivo. Povos inteiros migram para sobreviver, florestas ardem enquanto líderes debatem o futuro do planeta, tradições ancestrais correm risco de desaparecer, e comunidades enfrentam violência, fome e deslocamento. No meio de tudo isso, missionários e missionárias continuam presentes onde a vida clama mais alto. É justamente essa presença, silenciosa, corajosa e profundamente humana, que atravessa cada página desta edição de novembro da Revista Missões e dá a ela uma força particular: aqui não trazemos apenas informações, mas testemunhos vivos do que acontece quando o Evangelho encontra a realidade concreta dos povos.
Essa realidade se revela, de modo particularmente sensível, na travessia do povo Warao. No texto de abertura, o missionário Juan Carlos Greco nos conduz ao coração dessa etnia marcada pela migração forçada, pelo risco de perda cultural e pela luta diária por sobrevivência. Ele nos apresenta a riqueza dos três “O”, Oralidade, Orgulho e Ouvintes, e mostra que, para caminhar com este povo, é preciso antes aprender a ouvi-lo. Ali onde a fome ameaça silenciar histórias milenares, onde a saudade da terra ancestral aperta o peito, onde o futuro parece incerto, missionários se fazem presença humilde e paciente, aprendendo a entrar no ritmo da vida Warao. É impossível terminar essa leitura sem sentir o peso e a beleza da memória que esse povo carrega, e sem se perguntar: quem ouvirá os que hoje lutam para não desaparecer?
Da Amazônia venezuelana e brasileira, seguimos até Moçambique, onde irmã Inês Regina nos oferece um testemunho que dispensa adornos. Ela escreve de um lugar onde a dor é cotidiana e onde a violência tem rosto, cheiro e nome. Mas também escreve de um lugar onde a esperança insiste em permanecer de pé. A frase que ecoa por toda sua experiência, “estamos juntos”, não é slogan nem consolo vazio: é a expressão de uma fé que não se rende, mesmo quando tudo parece desabar. Em terras moçambicanas, a missão se faz sobretudo na presença que acolhe, acompanha, partilha e fortalece. Ao ler suas palavras, o leitor perceberá que a missão não é feita de grandes ações, mas de gestos discretos que seguram o mundo em pé.
Essa mesma coragem de permanecer, agora diante da crise climática global, aparece no conjunto de textos dedicados à Cúpula dos Povos e à COP30. Em Belém, onde a Amazônia respira com dificuldade e clama por proteção, milhares de representantes de povos tradicionais, movimentos populares, pesquisadores e lideranças sociais denunciaram modelos econômicos que sacrificam territórios inteiros e beneficiam poucos. A reportagem reúne as vozes desses movimentos, que pedem justiça ambiental, soberania dos povos e o reconhecimento de que não existe futuro climático possível sem ter quem proteja as florestas, os rios e os biomas. Em diálogo com essa reportagem, o artigo de Marcus Eduardo de Oliveira aprofunda o contexto da emergência climática, mostrando o quanto estamos próximos de pontos de não retorno e o quanto a COP30 se torna, por sua localização e importância, uma oportunidade histórica para repensar o modo como habitamos a Casa Comum. Encontraremos ali uma análise contundente, que nos chama a entender que a defesa do planeta é, hoje, parte essencial da missão.
De Belém cruzamos oceanos e chegamos ao Uzbequistão, onde a missionária Andrea Leite Carvalho nos convida a algo que parece simples, mas é profundamente transformador: sentar-se no chão. Em sua reflexão, o chão torna-se espaço de igualdade, comunhão, escuta e despojamento. É sobre ele que as famílias uzbeques rezam, comem e acolhem; é nele que se aprende a aproximar o olhar das pequenas coisas e a reconhecer a presença de Deus nos gestos cotidianos. O leitor sairá desse texto com a sensação de que, muitas vezes, o caminho espiritual começa justamente quando deixamos de querer estar “acima” e aceitamos descer. É uma verdadeira catequese da humildade, narrada a partir da experiência missionária concreta.
Também nesta edição, a espiritualidade encarnada ganha novo rosto no relato sobre o XVI Encontro da Pastoral Afro-Americana e Caribenha. Realizado pela primeira vez na Argentina, o encontro revelou a força e a resistência das comunidades afrodescendentes, que carregam consigo uma história de fé, luta e ancestralidade frequentemente invisibilizada. Ibrahim Muinde, imc, mostra com clareza como esse encontro reacende a consciência de que o rosto afro é parte constitutiva da fé latino-americana, e como a Igreja é chamada a caminhar com esse povo de maneira sinodal, denunciando o racismo, acolhendo a migração, fortalecendo a juventude e valorizando a sabedoria ancestral. É um texto que exige não só leitura, mas conversão pastoral.
No meio desse mosaico de culturas, lutas e espiritualidades, a reflexão de Mauricio Guevara nos recorda o essencial: para São José Allamano, santidade e missão caminham juntas. Não se trata de feitos extraordinários, mas da fidelidade no cotidiano. A santidade que ele propõe é silenciosa, perseverante e profundamente enraizada na vida real. É uma santidade que se aprende no encontro com os povos, na escuta das dores e no serviço humilde, exatamente como mostram todos os testemunhos desta edição.
Por fim, o professor Edson Luiz Sampel nos traz uma reflexão direta e urgente sobre a responsabilidade da Igreja em relação ao batismo das crianças. Sua palavra é clara e formativa, lembrando que a fé se transmite no concreto e que a Igreja tem o dever de garantir às novas gerações o acesso aos sacramentos que sustentam a vida cristã.
Assim, esta edição de novembro não apenas reúne conteúdos; ela revela um panorama vivo da missão hoje: povos que resistem, missionários que permanecem, territórios que clamam, tradições que ensinam e uma Igreja que continua sendo chamada a escutar, aprender e anunciar. É uma edição que se lê com o coração aberto e que exige do leitor uma postura ativa: deixar-se tocar, permitir-se aprender, e, quem sabe, sentir o impulso de também dizer “estamos juntos” aos que mais precisam.
Que esta leitura inspire caminhos e desperte em cada um de nós a coragem de escutar os povos, porque é ali, na voz deles, que Deus continua falando.