Farol de esperança III: Os indígenas nos ensinam... Os três “o”
O Instituto Missões Consolata (IMC) tem uma relação muito ativa e comprometida com os migrantes, especialmente nas Américas. Seu carisma de "consolar" o leva a contemplar e adentrar cada vez mais a realidade a partir da perspectiva dos mais vulneráveis. Em Roraima, os missionários priorizam entre os migrantes a assistência humanitária aos indígenas Warao que partiram da Venezuela em busca de melhores condições de vida e oportunidades para seus filhos e para si mesmos. Junte-se a essas jornadas por meio destas páginas para, quem sabe, ser encorajado a consolar efetivamente pelo menos um migrante ou refugiado, ou a se juntar ao nosso serviço. Vamos! Vamos caminhar...
Há algum tempo, a equipe editorial de Missões relatou que “em um esforço conjunto para apoiar as comunidades indígenas, os Missionários da Consolata estão desempenhando um papel fundamental em Roraima, Brasil. Sua ação solidária tem como foco as comunidades indígenas Warao, que enfrentam dificuldades decorrentes da crise na Venezuela e da falta de terras agricultáveis.
O Instituto Missões Consolata (IMC) criou uma Equipe Itinerante em Boa Vista, Roraima,que agora é uma escola itinerante. Ela prioriza a assistência humanitária aos indígenas dessa etnia, que constituem a segunda maior da Venezuela. Essas comunidades têm enfrentado desafios há décadas, devido às ações governamentais e empresariais que afetaram seu modo de vida tradicional.

Fazendo memória
Desde 1920, a salinização do rio Orinoco forçou os Warao a abandonarem suas terras ancestrais e a se estabelecerem próximos a vilas e cidades, onde muitos se tornaram mão de obra barata para a indústria madeireira. Com a crise econômica na Venezuela, a ajuda governamental cessou, deixando os Warao dependentes de cestas básicas. Isso intensificou o movimento de migração dessas comunidades em busca de comida e tratamento de saúde, levando muitos deles ao estado de Roraima, Brasil.
Os Missionários da Consolata, em colaboração com o projeto Caminhos de Solidariedade, liderado pela Diocese de Roraima, CNBB, Cáritas Brasileira e o Serviço Pastoral do Migrante, “estão desempenhando um papel vital na acolhida, proteção, promoção e integração dos imigrantes, incluindo os indígenas Warao, em todo o Brasil”.
A "equipe itinerante" não existe mais, mas existe uma escola itinerante. Como assim? Esta jornada com os Warao é, em parte, uma escola itinerante. Para participar dela, precisamos entender os pilares da história indígena Warao. Entender os três "O": Oralidade, Orgulho e Ouvintes.
Oralidade
A vida de um Warao tradicional – morichalero, como dizem alguns – ocorre nas imediações, o que implica uma maneira de se concentrar no trabalho de cultivar o ocumo chino (vindo nos origens da Índia), extrair os produtos do moriche, sair com a canoa para pescar e, finalmente, o que pode ser algo celestial… um paraíso. No entanto, a realidade do Warao não é tão idealista, pois vários problemas surgem da distância que separa uma casa da outra, a ausência de água livre de contaminação, suscetível de ser consumida pelo homem, a escassez de alimentos… esses são apenas alguns contratempos que eles precisam enfrentar.
Alguém disse que é muito difícil ouvir uma história ou contar quando você está com fome, e essa situação de emergência em que muitas comunidades Warao se encontram não permite que as tradições culturais sejam realizadas da maneira mais consistente com a prática antiga.
No entanto, a oralidade está perdendo mais terreno todos os dias, segundo algumas pessoas. Poucos são os idosos que se sentam de manhã ou à noite para contar histórias aos netos ou filhos, alguns lembram apenas os mitos quando chegam estrangeiros que, por sua vez, os lembram desse conhecimento. Certamente, alguns homens e mulheres, e até alguns wisiratu (xamã), continuam vigilantes em manter viva essa tradição, porque sabem que é a única maneira de os Warao manter a história viva: o pensamento é como uma espécie de caderno, onde você pode “escrever” a história para que seja lembrada constantemente.

Orgulho
Os Warao se orgulham de sua capacidade de lembrar coisas, eventos, através da repetição de histórias que entendem, variam, compõem e dão significado “lógico” à aparência de certos elementos, como moriche, morocoto, janoko, o dia, a noite e assim por diante.
Mas as histórias, os mitos, também servem para entender as causas das necessidades que os Warao estão enfrentando hoje, bem como para comparar como era o mundo Warao em tempos remotos e agora, cheio de mudanças e circunstâncias adversas. Eles atribuem a vida diariamente a eventos sobrenaturais, a punições divinas, produto da desobediência de algum indivíduo ou família.
O mito Warao fala desde as origens, na sua fundação, explica o nascimento de tudo o que os circundam, em perfeito acordo com o meio ambiente, e o contexto ao qual pertencem. Mas também o mito conta à história contemporânea não apenas a localidade em si, mas também as terras vizinhas que compartilham a mesma cultura, indo além dos confins do céu e no infinito das profundezas do rio, com o Nabarao como espíritos da água, guardiões eternos das imensas profundezas.
Os mitos falam de personagens fantásticos que são reais nele, da mesma forma que perfeito e “cronológico” é o tempo e preciso aquele espaço que parece interminável no suspenso da narrativa.
A atmosfera de atenção criada quando a pessoa está contando o mito é extraordinária: os ouvintes permanecem atentos à história, vivendo cada um de seus detalhes. O silêncio circundante é cortado apenas pela voz do narrador, em quem cada um dos personagens ganha vida, enquanto o público imagina rostos, vozes, gestos, ações. As crianças ficam atentas, algumas sentadas no chão, outras em redes, enquanto as mulheres amamentam seus bebês.
Ouvintes
No final, os ouvintes ficam pensando sobre o aprendizado expresso, outros sorriem com algo engraçado, outros entristecem-se com uma história lamentável. Mitos ou contos (deneabu ou outros) não são explicados. Eles terminam quando o orador diz. Dihana! Até aqui! São os jotarao (crioulos) que querem que depois a história seja expandida, explicada ou outra forma de continuidade para ser desenvolvida.
Para os Warao, o relato permanece lá… e voltará à sua mente em outro momento para tirar conclusões ou aplicá-lo (o sábio é aquele que tira do tronco das memórias o que é útil para sua sobrevivência). Existem inúmeras experiências que tocam ao ouvir os mitos na voz de homens e mulheres sábios que ainda as lembram, trazendo esses eventos para o aqui e agora, como se os fizessem nascer de novo. Através de suas vozes, eles tomam presença novamente e vários sentimentos se manifestam.
Embora não haja explicações como eu disse, alguns exclamam: que bom que isso aconteceu, porque se não fôssemos casados com os Nabarao! (ser do fundo das águas), acreditando firmemente na realidade que o mito contou. No entanto, é lamentável que nas comunidades Warao a tradição oral esteja sendo perdida. Os idosos e adultos confessam que, se não contam os mitos, já os estão esquecendo.
Quando chegávamos às comunidades e falávamos que desejávamos ouvir mitos, aqueles que sabiam demonstravam seu conhecimento com orgulho e ao janoko (palafita – casa), onde estava ocorrendo a reunião, dezenas de meninos, meninas, mulheres, jovens, homens se aproximavam para ouvir atentamente a história contada. Foi o caso da comunidade Muhabaina de Araguao, a primeira em que tentamos incluir o relato Warao (mitos e outros) como parte da Eucaristia (já tínhamos começado a celebrar a Missa apenas com o manto sobre as pranchas que servem como piso, e o povo sentado: é que lá na maioria das comunidades, os Warao fazem suas duas refeições por dia, uma muito cedo, entre 7h ou 8h e a segunda no meio da tarde, a maioria sentados nas pranchas que servem de chão).
E a história ou relato incluía na “roda da gente” mais pessoas … a história deu voz a mais Warao que se aproximavam pouco a pouco. O dono do janoko, onde celebramos a Eucaristia e onde, em geral, são realizadas as demais atividades (catequese, reuniões, informações etc.) antes de morrer, pediu aos seus filhos que continuassem permitindo as atividades que os sacerdotes incentivavam e aqueles que a comunidade podia organizar no futuro. E ele confessou que estava mais atraído pelas Missas a partir de “quando começamos com as histórias-relatos Warao”.
Isso vislumbra que há esperança, que a intenção existe, apenas falta interesse, de ambas as partes (comunidade e sacerdotes), como eles mesmos expressam. Os teóricos ligados ao estudo das culturas indígenas e, neste caso específico dos Warao, enfatizaram sempre a importância da oralidade para os processos de reconstrução da memória etno-histórica, antiga ou contemporânea, porque através dela se pode aprender algo mais todos os dias sobre uma comunidade, uma região, ou uma família específica.
Oooo…
Se você não está entediado, podemos ocasionalmente compartilhar algumas histórias…. Como eu disse sem conclusões ou simplesmente com alguns breves esclarecimentos. Seguimos caminhando juntos.
Juan Carlos Greco, IMC, é Missionário da Consolata entre os Warao, Roraima, Brasil.