A África não sai da gente
Casal brasileiro relata experiência missionária em Pemba, Moçambique.
Somos o casal César e Rosani Campos, casados há 44 anos, temos um filho e atualmente moramos em Praia Grande, diocese de Santos, estado de São Paulo, Brasil. Iniciamos nossa caminhada missionária no ano de 2000, com um projeto que foi implantado na paróquia em que vivíamos na cidade de Mogi Mirim, interior do estado de São Paulo, com o nome de SINE - Sistema Integral de Evangelização, quando iniciamos visitas de casa em casa, a partir de um retiro querigmático, e posteriormente vivência em pequenas comunidades. Durante sete anos viajamos para outras cidades e estados, colaborando na implantação deste projeto, desta forma cada vez mais nos envolvendo com a Missão.
Fomos coordenadores do Conselho Missionário Diocesano (COMIDI) na diocese de Amparo, SP e depois recebemos o convite para ajudar na sede das Obras dos Cenáculos Missionários (OCM), em São Paulo, capital, na Casa Missionária Fatiminha, a qual administramos por quatro anos, local onde estão as sedes do COMIRE Sul 1, Infância e Adolescência Missionária (IAM), Juventude Missionária (JM) e OCM.
Neste período, Rosani foi secretária do COMIRE Sul 1. Em 2013, padre José Stella, fundador da OCM, fez uma proposta de enviar pelas Obras, duas pessoas para o Amazonas e duas para a África, em uma visita missionária. Padre José convidou Rosani e Renata, que reside em Franca, para fazerem uma experiência missionária em Moçambique por 30 dias.
Ao retornarem, trouxeram consigo um pedido de dom Luiz Fernando Lisboa, na ocasião bispo da diocese de Pemba, para o Regional Sul 1, no sentido de enviar missionários para aquela diocese. Através do COMIRE Sul 1, esse pedido foi levado aos bispos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e em 2018, na Assembleia dos Bispos, o Projeto Pemba foi aprovado por unanimidade e o Regional Sul 1 iniciou o envio de missionários, leigos e sacerdotes para aquela diocese.
Nesse período, Rosani me contava sobre o que ela havia vivenciado na diocese de Pemba em sua visita e isso foi despertando em mim o desejo de também conhecer esse povo e em 2019 nós fomos enviados à Pemba, onde atuamos no Centro de Formação Diocesano de Metoro, que na língua nativa significa rato - a quantidade de ratos que lá existe justifica esse nome.
Em Pemba
Nós morávamos na casa paroquial da Paróquia Cristo Rei de Metoro, juntamente com o padre Adriano, missionário brasileiro da diocese de Jundiaí, também enviado pelo nosso Regional, sendo este um período de muito aprendizado e experiências que muito nos marcaram.
No primeiro domingo, após nossa chegada a Metoro, na primeira celebração eucarística que participamos, fomos acolhidos pela comunidade com muitas músicas e danças. Também recebemos presentes, como: amendoim, milho, algumas frutas, farinha de milho branco (sendo esta utilizada para o preparo da Xima, o alimento mais consumido pelos habitantes locais) e capulanas, (nome que se dá a um tecido muito colorido que tradicionalmente é usado por todos). A riqueza de cores e motivos é característica da riqueza cultural e artística do país. As mulheres usam a capulana no seu dia a dia para cobrir o corpo, e, por vezes a cabeça. Também pode ser usada pelos homens na confecção de camisas e calças e na ornamentação de ambientes.
Padre Adriano contou que algumas pessoas haviam lhe perguntado por que nós andávamos de mãos dadas. Nós não entendemos esse questionamento, e o padre nos explicou que, na cultura deles, qualquer manifestação amorosa em público, entre um homem e uma mulher, é motivo de escândalo, e que foi explicado a eles que agíamos assim porque entre nós havia casamento, então dissemos ao padre que não iríamos mais andar de mãos dadas, como sempre fizemos desde que nos conhecemos, mas o padre nos orientou que continuássemos, pois da mesma forma que respeitamos a cultura deles, eles também devem aceitar a nossa. E assim fizemos. No início quando caminhávamos por lá, era comum ver alguém ir chamar os outros para nos ver de mãos dadas, mas depois acho que eles se acostumaram e ninguém mais se importava com isso.
Rezar o terço
Outro fato que nos marcou foi quando pela primeira vez fomos rezar o terço em uma casa. Assim que chegamos todos se sentaram no chão, na terra, pois eles se reúnem no quintal, e nós também sentamos no chão, então alguém trouxe duas cadeiras para que sentássemos. Falamos que sentaríamos no chão como todos ali, mas padre Adriano, de imediato, deu um sinal para sentarmos nas cadeiras e assim fizemos, embora isso nos fosse muito desconfortável, pois só nós sentávamos em cadeiras e os demais na terra. Quando chegamos na casa, padre Adriano nos explicou o motivo de termos que sentar nas cadeiras: primeiro, éramos visitas e segundo, idosos. A partir dai em todas as casas que íamos rezar o terço, lá estavam duas cadeiras para nós. No início ficávamos perdidos no terço, pois eles rezam em Emakua, que é a língua nativa da maioria que ali vive, mas ao longo do tempo aprendemos a rezar a Ave-Maria como eles.
Foi um tempo muito enriquecedor para nossas vidas. Administrávamos o Centro de Formação Diocesano, no qual quase todo final de semana havia algum encontro com 30, 40, até 60 pessoas, tínhamos que cuidar de toda a estrutura, acomodação, alimentação etc. Quase toda semana tínhamos que ir à Pemba, 95 km de estrada muito perigosa, pois além de mal conservada, muitos buracos. Também há várias aldeias ao redor da rodovia e são muitos que atravessam de um lado para o outro, pessoas tanto adultos como crianças, galinhas, porcos, cabritos... Sempre saímos bem cedo para voltar antes do escurecer, eram viagens nas quais tínhamos que estar sempre atentos a tudo.
Quando não íamos à Pemba, nós acompanhávamos padre Adriano nas celebrações nas aldeias, que nem sempre são de fácil acesso, pois não há estradas, são literalmente caminhos, e tínhamos que descer do veículo para cortar galhos para poder passar com a caminhonete, cabine dupla 4x4. Parece ostentação, mas é a única maneira de se tentar chegar até as aldeias. Se for tempo das chuvas, (seis meses de seca e seis meses de chuvas, ou seja, é seca ou são enchentes), nem com esse veículo se consegue chegar, pois algumas aldeias ficam ilhadas, sem acesso.
Quando as chuvas começaram fui com padre Adriano a uma aldeia que não havia como chegar de veículo, então fomos a uma mais próxima e dali caminhamos por aproximadamente 5 km pela mata e pelos rios até o local da celebração da Santa Missa.
Alegria do povo
Mas todo o esforço que havia para chegar nas aldeias, era compensado pela acolhida do povo, eles ficam ao lado de fora da capela (onde há capela pois em muitos locais as celebrações são embaixo das árvores) aguardando a chegada do padre, então eles começam a cantar e dançar, dando as boas vindas aos que estão chegando, e nós íamos cumprimentando um a um, da criança de colo aos mais idosos e só depois se entrava para a celebração.
A celebração dura aproximadamente duas horas, e após o término, nós conversávamos com as pessoas, na maioria das vezes, precisávamos de um intérprete, pois embora a língua oficial do país seja o português, só fala esse idioma os que têm acesso à escola onde se ensina a língua oficial. Em casa se aprende a língua nativa. Esses momentos eram maravilhosos, estar no meio deles é muito gratificante, isso nos marcou profundamente.
Pandemia
Em 2020, com a pandemia, nossa Missão foi interrompida, ficamos um mês, fechados dentro de casa, sem contato físico com ninguém, isso foi terrível, até que em um domingo à tarde, dom Luiz Fernando entrou em contato conosco, dizendo que recebeu uma ligação do cônsul brasileiro em Moçambique, informando que provavelmente haveria um vôo de repatriação, saindo de Maputo para o Brasil e que se algum missionário brasileiro quisesse retornar, essa seria a hora, pois os aeroportos internacionais já estavam fechados. Sentimos que era o momento de voltar, pois missionário fechado não é missionário, também sentíamos que tanto dom Luiz Fernando quanto padre Adriano tinham uma grande preocupação conosco diante daquela situação. Naquela noite consegui contato com o cônsul e ele ficou de me retornar no dia seguinte, para confirmar se realmente haveria o vôo, na segunda à tarde ele confirmou. Diante disso teríamos que ir até Maputo. Conseguimos o último vôo para quarta-feira, pois os aeroportos locais também iriam fechar. O vôo de repatriação, que a princípio seria na quinta-feira, mudou para sexta-feira, então, teríamos que ficar dois dias em Maputo, mas ficar onde?
E como Deus nunca nos abandona, conseguimos ficar em um apartamento de um amigo de uma missionária brasileira que lá estava, Helena. Esse senhor havia deixado o apartamento na cidade para ir com a família para uma casa de campo, onde ficariam todos juntos e com isso o apartamento estava vazio. Na sexta-feira retornamos ao aeroporto para voltamos ao Brasil.
Nossos corpos voltaram, mas nossos corações ainda estavam em Moçambique.
Em 2023, recebemos um convite de dom Juliasse, agora bispo de Pemba, para voltar àquela diocese, desta vez para ajudá-lo na administração do Paço Episcopal, na cidade de Pemba, que é uma casa de acolhida, local por onde todos passam, seja vindo ou voltando de Pemba; bem como também os missionários que estão por toda a diocese, pois tudo é feito em Pemba, documentos pessoais, tratamentos médicos, manutenção de veículos, compra de alimentos etc. Por isso, o Paço Episcopal é muito movimentado.
Tivemos uma experiência bem diferente de Metoro, mas não menos gratificante em 2024, mais uma vez nossa missão foi interrompida, pois a Missão onde estava padre Salvador, da diocese de Guarulhos, também enviado pelo nosso Regional, foi completamente destruída pelos insurgentes, que aterrorizam a Região Norte de Moçambique. Padre Salvador saiu de seu local de Missão praticamente com a roupa do corpo, no início os ataques eram mais ao Norte da província, mas na ocasião estavam mais perto de Pemba.
Diante desta triste situação, os bispos do nosso Regional decidiram suspender a Missão em Pemba e os quatros missionários que lá estavam, nós, e os padres Salvador e Carlos da diocese de Mogi das Cruzes, por obediência, regressamos ao Brasil.
Uma vez nós ouvimos dizer que “você sai da África, mas a África não sai de você” e hoje nós entendemos muito bem o que essa frase significa.
César e Rosani Campos são leigos missionários.