Doutrinados pela Ideologia das Quantidades
A civilização que confunde os relógios com o tempo, o crescimento com o desenvolvimento e o grandalhão com grandeza também confunde a natureza com a paisagem, enquanto o mundo, labirinto sem centro, se dedica a romper seu próprio céu. (Eduardo Galeano)
Por Marcus Eduardo de Oliveira
Observação aguda, uma coisa é certa: desde que a “economia se tornou uma religião”, repetindo as palavras do ensaísta francês Jean-Claude Guillebaud, de certa forma passamos a ser doutrinados para privilegiar as quantidades, e não as qualidades do crescimento econômico moderno.
Nesse desdobrar, no lugar da proteção ambiental, nossa visão mecanicista do mundo se volta cada vez mais para o aumento da produção material, ignorando, por certo, os rastros de destruições (no plural mesmo) da crise ecológica gestada pelo sistema capitalista (mundo globalizado).
Assim sendo, no meio de um sistema que devasta tudo, o próprio sistema, incapaz de reconhecer os limites planetários, sequer respeita os pressupostos da ecologia, principalmente o mais significativo deles, o tempo de regeneração.
A razão, digamos sempre, é simples de entender: na ordem geral das coisas, tudo gira em torno dos interesses econômicos. A natureza “vira” apêndice, nada mais.
Acontece que, em tal contexto, como somos docilmente capturados pela ideia influente de que o avanço da economia de mercado nos salvará da própria crise que criamos, seguimos ignorando, sobretudo, o principal problema de fundo: nossas demandas (infindáveis) conflitam com a oferta (limitada) da natureza.
Vê-se assim que as rupturas metabólicas que provocamos, ou a carga pesada que impomos sobre o planeta, principalmente no ato de extrair recursos para transformá-los em mais mercadorias, estão na base desse atual desajuste planetário.
Dano ecológico, falha no metabolismo, digamos com outras palavras.
No curso dos acontecimentos, seguimos liberando 53 bilhões de toneladas de CO2 por ano na atmosfera, como mostra o recente estudo “Indicadores de Mudanças Climáticas Globais”, publicado na revista Earth System Science Data (junho 2025).
Mas não é só isso. Com nosso antropocentrismo, e notadamente pela sociedade de hiperprodução e hiperconsumo que criamos, como já deve ter ficado claro, não cessamos de ameaçar o sistema vida no planeta que nos acolhe. Logo, nesse sentido, Aílton Krenak está coberto de razão: “a lógica da produção e do consumo se tornou uma armadilha que aprisiona a humanidade em um ciclo de destruição”.
Balanço feito, desde 1970, nossa pegada ecológica (a quantidade de terra e área marítima necessária para absorver todo o CO2 que emitimos) mais do que duplicou.
Assim, vale dizer que aumentamos – e muito - o impacto do nosso consumo no planeta. Agora mesmo, num cenário de crises compartilhadas, as mudanças climáticas e ecológicas que estamos passando (e que refletem no desequilíbrio da cadeia ecológica que rege a vida na Terra) impacta sobre a sustentabilidade do planeta.
Portanto, dizendo sem meias palavras, nosso sistema de economia global afeta as macroestruturas da Terra. Para piorar o quadro, se insistirmos com o crescimento com utilização intensiva de carbono, produziremos mais degradação ecológica. Perderemos muito mais natureza. Se permanecermos submetendo “a sociedade a imperativos de um pensamento fundado no cálculo e nas rentabilidades máximas”, como sintetiza o imenso Edgar Morin, tanto mais confundiremos ecologia com mercado; ou meio ambiente com economia capitalista, dá no mesmo.
Tempos estranhos, o que está em jogo parece definir, a rigor, algum sentido: mais insustentabilidade e menos equilíbrio ecológico; mais alterações climáticas e menos biodiversidade. Adversidades à causa maior: a saúde planetária.
Confirmando a narrativa, desde que o capitalismo, “nome genérico do maior produtor de catástrofes mundiais de que se tem notícia e que tem levado o mundo para uma catástrofe sem volta, principalmente por sua capacidade de destruir a natureza” (Marcia Tiburi), conseguiu se impor entre nós, abrimos seguidas feridas nos ambientes em que visitamos.
Na verdade, num contexto ampliado, poder-se-á dizer, por fim, que colocamos em risco a qualidade do sistema-vida, seja a vida humana ou não humana.
Daí em diante, convém lembrar Elizabeth Kolbert: “pode parecer impossível imaginar que uma sociedade tecnologicamente avançada escolha, em essência, destruir-se, mas é isso o que estamos em vias de fazer”.
*Marcus Eduardo de Oliveira é economista e ativista ambiental. Autor de “A civilização em risco” (Jaguatirica, 2014), entre outros. prof.marcuseduardo@bol.com.br