Desapego e Economia Circular
Desigualdade social faz com que quase um bilhão de pessoas viva à margem da sociedade, tendo a fome, a pobreza, a falta de saneamento básico e de moradia como cotidiano presente.
Por Juacy da Silva
Talvez você não consiga resolver a situação de milhões de pessoas (ou até bilhões) que vivem na miséria, na pobreza, sofrendo injustiças, violência ou com fome ao redor do mundo, mas pode ajudar a resgatar algumas delas todos os dias. Embora esses desafios globais sejam complexos, as ações individuais e locais têm o poder de fazer a diferença na vida de pessoas específicas.
Diversos países do mundo, incluindo o Brasil, mesmo em pleno século XXI, ainda são caracterizados por uma extrema desigualdade social e econômica, onde um percentual mínimo, as camadas que integram o chamado "andar de cima", os 1%; 5% ou no máximo os 10% da parte superior da pirâmide populacional, concentram mais de 30%; 40% ou até quase 50% da renda, riqueza e propriedades nacionais.
A soma dos bens, renda, riqueza e propriedade das 40 maiores fortunas do mundo tem um valor maior do que o PIB de mais de 170 países, onde vivem mais de 7 bilhões de pessoas, quase a metade na linha da pobreza ou abaixo da mesma.
O resultado desta desigualdade que choca quem para um minuto para refletir sobre esta triste realidade é a presença de grandes camadas populacionais, quase um bilhão de pessoas vivendo às margens dessas sociedades e países, tendo a fome, a miséria, a falta de moradia, de saneamento básico e todas as formas de violência como cotidiano em que meramente sobrevive tanta gente. Isto é uma afronta à dignidade humana.
De forma semelhante, a precariedade dos serviços públicos como água, esgotamento sanitário, educação e saúde e precariedade das relações de trabalho e baixa qualificação para o trabalho, empurram essas grandes massas para o desemprego, para o subemprego, para o trabalho informal, ou até mesmo para o trabalho escravo ou semi escravo (eufemisticamente denominado de condições análogas à escravidão) impedindo ou dificultando que, ao final da vida, possam ter as mínimas garantias sociais como aposentadoria e renda que lhes possam permitir desfrutar de uma vida digna.
Existem alguns mecanismos de mitigação dessas situações que, apesar de apenas minorar temporariamente este sofrimento, não alteram as estruturas econômicas, sociais e políticas injustas que empurram milhões ou bilhões de famílias para uma exclusão permanente, facilitando o que é denominado de "reprodução social e estrutural da pobreza, da miséria e da violência".
Políticas assistencialistas e compensatórias
É neste contexto que surgem as chamadas políticas assistencialistas e compensatórias, que, mesmo sendo políticas públicas existentes em todos os níveis e estruturas de poder, não conseguem promover mudanças que são denominadas de "sociotransformadoras".
Essas medidas são formas paliativas de apenas "minorar" tais condições e que podem e, efetivamente, são formas em que tanto os entes públicos, governamentais quanto não governamentais, pessoas, entidades caritativas, igrejas, clubes de serviços e tantos outros arranjos sociais costumam atuar, esporadicamente.
Nesta questão existem dois aspectos que precisam ser mencionados. O primeiro é a volúpia pelo consumo de bens materiais, o que denominamos de consumismo, que tem como corolário, consequência, o desperdício de inúmeros bens como alimentação, energia, água, roupas, calçados, material de construção etc.
Alguns dados estatísticos chocam quem, por um minuto, tenta refletir sobre esta realidade. Por exemplo, aproximadamente um terço (33%), ou em alguns países até 40% de todos os alimentos que são produzidos no mundo vão parar no lixo, quando deveriam chegar à mesa de quase um bilhão de pessoas famintas, que vivem na miséria, sem sonhos e esperança de dias melhores. Diariamente vemos fotos de pessoas esquálidas em inúmeros países e continentes e o Brasil faz parte desta triste fotografia.
De igual modo todos sabemos que muita gente possui uma quantidade enorme de roupas e calçados que ao longo do ano, 365 dias, praticamente "não repetem", indicando que possuem centenas de pares de sapatos, ternos, camisas, calças, shorts, vestidos que são usados apenas uma ou pouquíssimas vezes, enquanto do outro lado da pirâmide social existem milhões de pessoas utilizando roupas surradas, remendadas , descalças ou com sapatos ou sandálias que demonstram o estado de pobreza permanente em que vivem.
Para produzir alimentos, roupas, sapatos e, enfim, todos os bens necessários à vida social e econômica é necessária a utilização dos "recursos", bens da natureza, como solo, água, as florestas, matérias primas, minerais e isto causa um tremendo impacto na saúde do planeta, acarretando a destruição dos ecossistemas, dos biomas, da biodiversidade; aumentando a produção de rejeitos sólidos/lixo, contribuindo também para a produção de gases de efeito estufa, o aquecimento global e as mudanças climáticas, enfim, a crise climática e as tragédias que impõem perdas econômicas, sociais, provocam sofrimento e morte.
Ai é que entra a questão do desapego e da frugalidade, como tanto enfatizou o Papa Francisco e neste processo podemos praticar a caridade, o amor ao próximo, a solidariedade, repartindo, doando não apenas o que não estamos utilizando ou consumindo, mas sim, perceber que não precisamos nos apegar tanto aos bens materiais, doando um pouco do que temos, além, claro dos impostos que já pagamos aos organismos públicos (que arrecadam), cujas receitas deveriam ser aplicadas com ética, eficiência, transparência, sem corrupção e sem malandragem, tentando driblar os órgãos de controle público.
Se, pelo menos, de vez em quando pudermos dar uma olhada em nossos guarda roupas, em nossas geladeiras, em nossas "dispensas" poderemos perceber que temos muita coisa que não estamos utilizando e, ao invés de deixarmos que as traças destruam ou que os alimentos percam as suas qualidades nutritivas e se deteriorem, com certeza, mesmo que não consigamos, individualmente, resolver os problemas da miséria, da pobreza e da fome que destroem e barram os sonhos de uma vida digna do mundo todo; podemos contribuir para que algumas poucas pessoas e famílias possam se alegrar pelo menos por um curto período/tempo ou em determinados momentos.
Dia Mundial dos Pobres
Foi nesta perspectiva que o Papa Francisco criou o "Dia Mundial dos Pobres", para podermos, pelo menos por um dia, refletirmos que se somos todos e todas, filhos e filhas de Deus, ou seja, irmãos e irmãs, não podemos "passar ao largo" de quem está sofrendo e marginalizado.
O espírito da caridade, como bem é enfatizado na Bíblia, é fundamental para que a vida cristã seja vivida na plenitude do Evangelho. "Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e a caridade, estas três; mas a maior destas é a caridade", conforme lemos na Carta de São Paulo, 1ª Coríntios, 13:13.
Quando falamos em caridade, o desapego aos bens materiais significa que podemos dividir um pouco, do muito que temos com quem tem bem menos ou nada tenha, estamos também nos conectando com a ecologia integral, com a economia circular, ou seja, dando mais vida útil a bens materiais que não estão sendo corretamente utilizados ou que vão acabar no lixo e evitando que destruam a natureza para produzirem tais bens.
Pense, reflita e veja o que você pode fazer pelo seu próximo que, mesmo sendo seu próximo fisicamente, está muito distante em termos de dignidade humana e isto deve "mexer" com quem tem, de fato, um espírito cristão ou de solidariedade e amor universal, como tanto é enfatizado nos fundamentos de todas as religiões.
Concluindo, vejamos o que nos diz o Apóstolo Tiago (2:26) "a fé sem obras é morta", ele afirma que, assim como o corpo sem o espírito está morto, a fé sem obras também está morta. Essa passagem bíblica enfatiza a importância de demonstrar a fé através de ações e práticas, mostrando que uma fé verdadeira se manifesta em ações concretas.
Em outras palavras, a fé não é apenas uma crença interna, subjetiva, conectada de forma transcendental à divindade em que cremos, mas fundamentalmente uma força que impulsiona a pessoa a agir de acordo com essa crença, a engajar-se para que enquanto estamos neste mundo material, que ele seja justo e solidário e sustentável. Se a fé não se traduz em obras, isso indica que a fé não é genuína ou não tem poder para transformar a vida das pessoas.
Além da importância de nossas ações individuais, mitigatórias, emergenciais, também não podemos nos esquecer da dimensão profética e libertadora do evangelho e da vida cristã e de outras crenças religiosas, no sentido de lutarmos por mudanças profundas nas estruturas sociais, políticas e econômicas que geram a exclusão, o racismo, os preconceitos, a fome, a miséria, as injustiças sociais e todas as formas de violência.
As ações assistenciais ou até mesmo assistencialistas só existem porque ainda não temos sociedades e países onde a justiça social, a solidariedade, a inclusão e a paz sejam seus fundamentos verdadeiros.
*Juacy da Silva, professor fundador, titular e aposentado da Universidade Federal de Mato Grosso, sociólogo, mestre em sociologia, ambientalista, articulador da Pastoral da Ecologia Integral Região Centro Oeste.